quarta-feira, 5 de outubro de 2011

No vosso e em meu coração


Espanha no coração:

No coração de Neruda,
No vosso e em meu coração.
Espanha da liberdade,
Não a Espanha da opressão.
Espanha republicana:
A Espanha de Franco, não!
Velha Espanha de Pelaio.
Do Cid, do Grã-Capitão!
Espanha de honra e verdade,
Não a Espanha da traição!
Espanha de Dom Rodrigo,
Não a do Conde Julião!
Espanha republicana:
A Espanha de Franco, não!
Espanha dos grandes místicos,
Dos santos poetas, de João
Da Cruz, de Teresa de Ávila
E de Frei Luís de Leão!
Espanha da livre crença,
Jamais a da Inquisição!
Espanha de Lope e Góngora,
De Góia e Cervantes, não
A de Felipe II
Nem Fernando, o balandrão!
Espanha que se batia
Contra o corso Napoleão!
Espanha da liberdade:
A Espanha de Franco, não!
Espanha republicana,
Noiva da Revolução!
Espanha atual de Picasso,
De Casals, de Lorca, irmão
assassinado em Granada!
Espanha no coração
De Pablo Neruda, Espanha
No vosso e em meu coração! 
Manuel Bandeira

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Oswald de Andrade

O pássaro Cativo

Armas, num galho de árvore, o alçapão;
E, em breve, uma avezinha descuidada,
Batendo as asas cai na escravidão.

Dás-lhe então, por esplêndida morada,
A gaiola dourada;
Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos, e tudo:
Por que é que, tendo tudo, há-de ficar
O passarinho mudo,
Arrepiado e triste, sem cantar?

É que, criança, os pássaros não falam.
Só gorgeando a sua dor exalam,
Sem que os homens os possam entender;
Se os pássaros falassem,
Talvez os teus ouvidos escutassem
Este cativo pássaro dizer:

"Não quero o teu alpiste!
Gosto mais do alimento que procuro
Na mata livre em que a voar me viste;
Tenho água fresca num recanto escuro
Da selva em que nasci;
Da mata entre os verdores,
Tenho frutos e flores,
Sem precisar de ti!
Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola
De haver perdido aquilo que perdi . . .
Prefiro o ninho humilde, construído
De folhas secas, plácido, e escondido
Entre os galhos das árvores amigas . . .
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pompas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde,
Entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade:
Não me roubes a minha liberdade . . .
Quero voar! voar! . . ."

Estas cousas o pássaro diria,
Se pudesse falar.
E a tua alma, criança, tremeria,
Vendo tanta aflição:
E a tua mão, tremendo, lhe abriria
A porta da prisão . . .



Olavo Bilac

O açucar


O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.

Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
Este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.

Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema.

Ferreira Gullar

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Hotel Toffolo

E vieram dizer-nos que não havia jantar.
Como se não houvesse outras fomes
e outros alimentos.

Como se a cidade não nos servisse o seu pão
de nuvens.

Não, hoteleiro, nosso repasto é interior
e só pretendemos a mesa.
Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.
Tudo se come, tudo se comunica,
tudo, no coração, é ceia.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Reflexão sobre o teatro

"O teatro é isso: reproduz o gênero humano por isso torna-se abominável para olhos moralistas, assim como a cópula e o espelho." Jorge Luís Borges

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Noturno do Morro do Encanto

Este fundo de hotel é um fim de mundo!
Aqui é que o silêncio tem voz. O encanto
Que deu nome a este morro, põe no fundo
De cada coisa o seu cativo canto.

Ouço o tempo, segundo por segundo,
Urdir a lenta eternidade. Enquanto
Fátima ao pó de estrelas sitibundo
Lança misericórdia do seu manto.

Teu nome é uma lembrança tão antiga,
Que não tem som nem cor, e eu, miserando, 
Não sei mais como ouvir, nem como o diga.

Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.

Manuel Bandeira